domingo, 17 de maio de 2009

Oleanna: apontamentos de um diálogo impossível

Oleanna: apontamentos de um diálogo impossível
A peça Oleanna, do norte-americano David Mamet, datada de 1992, acolhe no acervo das suas preocupações, e de modo refractado e arguto, o malogro da linguagem enquanto comunicação, do esboroamento da retórica enquanto instrumento de negociação da distância entre interlocutores ou da arte da persuasão numa sociedade incessantemente renovada nos seus consensos; e a palavra como poder, aliada a uma lógica que discrimina e exclui no contexto perverso e absurdo em que a liberdade dos sujeitos se permite e activa. A depuração da acção dramática, o desenho vigoroso da situação representada ou a intensidade do conflito – o legado aristotélico é, recorde-se, precioso aliado formal e conceptual da construção do texto - são desde logo favorecidos pela configuração minimalista do espaço, em consonância com a lição do próprio dramaturgo, agora convincentemente iluminada pela opção de Carlos Pimenta. A acção dramática, desdobrada em três actos, confina as duas personagens, John, o docente universitário, e Carol, uma sua discípula, à estreiteza de um lugar, o gabinete do mestre, e esse constrangimento vincula-os ao confronto e ao conflito.
No primeiro acto Carol é insegura e ansiosa, reclama com veemência informação acerca do seu desempenho escolar e apoio urgente em face de dificuldades escolares intransponíveis; o seu interlocutor, concentrado no telefone e atento às expectativas de aquisição imobiliária legitimada pela sua iminente promoção, não leva muito tempo a demarcar o território do saber e a procurar, em leviana confidência, aplacar a vivacidade inconformada da sua aluna. A relação de poder desenha-se com nitidez, mas nos seus interstícios se distinguirá já o olhar felino da figura feminina, agent provocateur que subtilmente devassa o universo pessoal e profissional do seu incauto interlocutor. No segundo acto esta relação de força altera-se: a atitude do mestre é defensiva e a voz de Carol ganha em confiança e eloquência (é ela quem agora dita as regras do discurso), para mais caucionada pela zelosa solidariedade do que ela chama «O meu grupo», assim se hipotecando drasticamente o diálogo e se forçando John ao desesperado gesto físico de lhe procurar barrar a saída. O último acto consuma a inversão das relações de poder: ao arrojo da figura feminina, que construira um libelo acusatório através da reconfiguração e montagem dos seus apontamentos (um motivo condutor da acção dramática, como o é o telefone, espécie de voz córica e aviso insistente) e agora denuncia a hipocrisia do descontentamento contente do seu antagonista e o diletantismo de uma crítica movida ao sistema que alimenta o crítico, responde o professor com a expressão de um patético refrão - «Você não tem sentimentos?» - e com a proposta da secreta adopção de uma transgressora excepção à regra protegida pela confidencialidade e pelo silêncio dos gabinetes; Carol replica ao desastrado recurso último do antagonista com uma alternativa vexatória de censura e discriminação que retirariam a John o sentido e a razão do seu existir; finalmente a provocação mordaz e a insuportável profanação do universo íntimo do professor, que precipitam a sua investida brutal e despertam nele o insulto mais agressivo. Ele fora despojado dos seus sonhos de respeitabilidade e segurança. A vítima, qual animalzinho ferido e encolhido (em posição fetal?) perante a fúria cega do agressor, é afinal a vencedora a quem cabem as últimas palavras - «...sim. É isso mesmo.» - , sussurradas e dirigidas a si própria, lacónicas e misteriosas como fragmentos de um aforismo ou o sortilégio de Oleanna, título colhido nos nomes de Ole e Ana, os infaustos cultivadores de uma terra ingrata que lhes secou as promessas da utopia e as esperanças de uma vida melhor.
Nuno Pinto Ribeiro

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